A DUPLA SERVIDÃO DA MULHER: apropriação capitalista do trabalho doméstico e reprodutivo não remunerado da dona de casa sob a perspectiva de gênero.

Brenda Dias
20 min readApr 22, 2021

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‘’ Eles dizem que é amor. Nós dizemos que é trabalho não remunerado.’’ — Silvia Federici.

Artigo publicado no Observatório de Segurança Pública.

POR BRENDA DIAS

RESUMO

Sob a perspectiva de gênero, este artigo discute os desdobramentos da “naturalização” do trabalho doméstico e reprodutivo da dona de casa, bem como sua não remuneração no sistema econômico capitalista. A abordagem parte do rompimento entre o trabalho reprodutivo e o modo de produção capitalista, considerando que o motor das fábricas e do processo produtivo é o trabalho invisível de milhões de mulheres, conforme aponta Silvia Federici (2019). Conclui-se que a divisão entre os sexos(sic) é resultado de uma socialização do biológico e de uma biologização do social (Pierre Bourdieu, 2012), ou seja, a divisão sexual do trabalho é um produto histórico-social, sem relação com a “natureza” biológica feminina ou masculina. O sexo biológico, assim, é usado de forma arbitrária para justificar a manutenção do status quo, mantendo as mulheres confinadas ao ambiente doméstico e os homens livres para circular na esfera pública, como a assembleia e o mercado.

É importante destacar que a discussão não se limita ao campo econômico, mas também abrange aspectos sociológicos, considerando as implicações de uma divisão sexual do trabalho na esfera doméstica. Pierre Bourdieu (2012) contribui para a compreensão dos papéis sociais atribuídos aos indivíduos, ao apontar que o princípio de divisão entre os sexos é um alicerce da ordem social. Silvia Federici (2019) auxilia na análise das externalidades do trabalho não remunerado das donas de casa e da função reprodutiva que elas desempenham para o sistema capitalista, afirmando que esse trabalho tem valor para o capital.

PALAVRAS-CHAVE: trabalho doméstico não-remunerado; trabalho reprodutivo; divisão sexual do trabalho; capitalismo e gênero; esfera privada e pública.

  1. INTRODUÇÃO

Há um conjunto de normas e comportamentos que são prescritos e inscritos nos corpos e nas práticas dos indivíduos, adquiridos e incorporados de acordo com a posição social que ocupam. Compreender o papel da esfera doméstica feminina em uma sociedade governada por relações capitalistas revela um caráter menos inocente do que a ordem social masculina tenta incessantemente ocultar. Segundo Pierre Bourdieu (2012), em A Dominação Masculina, os papéis desempenhados pelas mulheres são fortemente sexuados, e o lugar que elas ocupam na sociedade é fruto de construções históricas e sociais, que criam espaços previamente determinados para os indivíduos com base na produção arbitrária do sexo biológico. Essa diferença socialmente construída entre os gêneros é vista como uma justificativa natural da desigualdade (Bourdieu, 2012, p. 20).

O mundo social, baseado no patriarcado, propõe a existência de duas estruturas: uma objetiva — ligada ao ser — e outra cognitiva — ligada ao conhecer. Essas estruturas, por meio do habitus, são incorporadas nos corpos dos indivíduos e refletem princípios dominantes de visão, pensamento e ação. A sociedade, através de uma visão patriarcal-masculina, estabelece fronteiras rígidas entre o feminino e o masculino, atribuindo às mulheres propriedades negativas dentro dessa lógica de dominação. Esse processo cria uma divisão sexual do trabalho, onde os homens são responsáveis pelas atividades produtivas da esfera pública, que geram capital, enquanto às mulheres são destinadas atividades “improdutivas” da esfera privada, como o cuidado com a prole e as tarefas reprodutivas. Assim, as mulheres permanecem em uma posição de inferioridade, dentro de uma relação de apropriação político-ideológica.

Essa divisão entre os sexos parece estar “na ordem das coisas”, como se fosse algo natural e inevitável. Ela está presente, ao mesmo tempo, de forma objetivada nas coisas (como na organização da casa, onde os espaços são “sexuados”) e de forma incorporada nos corpos e habitus dos indivíduos. Essa dicotomia é instituída a partir do sexo biológico, criando um movimento social e cultural que resulta em educações diferenciadas para homens e mulheres. Assim, torna-se “natural” que os homens se dediquem à realização pessoal e profissional, enquanto as mulheres assumem multitarefas e negligenciam a si mesmas.

O mito da “multitarefa” é parte dessa visão biologizante, que sugere que as mulheres são biologicamente capazes de desempenhar várias funções ao mesmo tempo. Ao se desdobrarem em funções reprodutivas, como o cuidado com os filhos, o marido e os idosos da casa, as mulheres legitimam, muitas vezes de forma inconsciente, essa dominação. Desde os primeiros contatos com o mundo exterior, as mulheres são socializadas de maneira distinta dos homens, o que resulta na segregação de suas funções na sociedade e na sua exclusão dos espaços públicos e de poder (tema que será aprofundado no capítulo 2). Esse mito e o lugar destinado às mulheres servem para invisibilizar o trabalho doméstico e evidenciar a profunda injustiça social a que estão submetidas.

É fundamental dar corpo, voz e identidade ao trabalho doméstico não remunerado, que é invisível, mas essencial para manter o mundo em movimento. O trabalho doméstico feminino inclui não apenas o cuidado com a casa, mas também o trabalho reprodutivo. A reprodução social é a base tanto do sistema econômico quanto do sistema político, sendo fundamental para o capitalismo. Silvia Federici (2019), em O Ponto Zero da Revolução, destaca que o trabalho reprodutivo não é livre e autônomo em relação ao capitalismo; mesmo quando remunerado, ele está “sujeito às condições impostas pela organização do trabalho e pelas relações de produção” (2019, p. 214).

Superar a biologização como justificativa para a desigualdade de gênero é um passo crucial para a equidade. Questionar a configuração social em que os indivíduos estão inseridos e os motivos que mantêm a “naturalização” dos papéis femininos no lar é essencial para historicizar as diferenças pré-estabelecidas entre os sexos, como propõe Bourdieu (2012, p. 8). Não há nada de ingênuo nas afirmações conservadoras sobre o papel das mulheres na sociedade. Essas funções de cuidado, atribuídas a elas, e o confinamento à esfera doméstica escondem interesses que devem ser questionados. A “natureza” biológica dos corpos não é uma continuação das aptidões desenvolvidas ao longo da vida, mas sim uma ferramenta usada pelos detentores do poder para manter a subordinação de uns e a dominação de outros.

Como aponta Silvia Federici (2019, p. 42–43), o trabalho doméstico não foi apenas imposto às mulheres, mas também transformado em um atributo natural da psique feminina. Ele passou a ser visto como uma necessidade interna, algo que viria da “natureza” feminina, em vez de ser reconhecido como trabalho, justamente para que não fosse remunerado.

2. A FUNÇÃO DOS TRABALHOS DOMÉSTICO E REPRODUTIVO PARA O CAPITALISMO

Silvia Federici (2019) aponta que o trabalho reprodutivo e doméstico da dona de casa é o motor que mantém o mundo em constante movimento. Essa afirmação nos leva à falsa dicotomia entre a esfera privada e a esfera pública, visto que o trabalho intensivo da produção depende de um componente extremamente importante e parte do capitalismo: o trabalho doméstico não assalariado para a reprodução da força de trabalho. A mulher, afeiçoada aos mandos do patriarcado e do capitalismo, atende as necessidades fisiológicas básicas do marido-proletário, como a alimentação, a vestimenta, a atividade sexual, dentre outras, para que o capitalismo possa, de forma cada vez mais intensiva, explorar esse trabalhador no processo de produção. Nas palavras de Federici (2019): “O trabalho reprodutivo está, em todas as suas facetas, sujeito às condições impostas pela organização capitalista de trabalho e pelas relações de produção” (2019, p. 214). A imensa quantidade de trabalho doméstico não-remunerado e depositado nas costas das mulheres é a razão da sobrevivência do capitalismo, diminuindo o custo da força de trabalho. Perquirir o trabalho doméstico é investigar as outras formas pelas quais o capitalismo explora as mulheres. Na fábrica ou fora dela, sendo o forno das indústrias ou o do fogão, a dona de casa é uma proletária da (re)produção da força de trabalho.

A esse respeito, encontramos uma diferenciação entre produção e reprodução, destacadas por Federici (2019). Inicialmente, a primeira distinção refere-se à tecnologia no processo de produção, onde foi possível o aumento da produção por unidade de tempo e menor demanda de mão-de-obra. Por outro lado, o trabalho doméstico não passou pela mesma reestruturação, não houve a redução significativa do “trabalho socialmente necessário para a reprodução da força de trabalho” (2019, p. 223), mesmo com a inserção das mulheres no mercado de trabalho. O afeto, o sustento da vida, os cuidados físicos e todo o trabalho necessário para a reprodução humana não podem ser redutíveis à mecanização, visto que esses cuidados demandam interação humana nas quais “elementos físicos e afetivos estão intrinsecamente combinados” (2019, p. 223).

O segundo destaque se refere à globalização do cuidado. Após o programa de ajuste estrutural, que consiste em empréstimos fornecidos pelo FMI (Fundo Monetário Internacional) e pelo Banco Mundial (BM) a países de Terceiro Mundo, e a reconversão econômica, o trabalho reprodutivo foi internacionalmente reorganizado e passa a ser preenchido por mulheres imigrantes, “especialmente no que se refere à prestação de cuidados de crianças e idosos e para a reprodução sexual de trabalhadores homens” (2019, p. 224). Com a reorganização da esfera privada de acordo com os interesses do mercado capitalista, o trabalho doméstico entrou em crise e foi remanejado às mulheres que trabalham como cuidadoras remuneradas. As consequências da globalização do cuidado implicam em 1) relações de poder entre as mulheres, instituindo uma divisão entre elas, visto que aquelas com melhores condições financeiras têm a possibilidade de transferir a outras mulheres os serviços domésticos do lar e reprodutivos através de um pagamento, e 2) há um custo social para as mulheres imigrantes e às famílias que elas deixam para trás.

Como a participação das mulheres no trabalho assalariado aumentou imensamente, grandes cotas de trabalho doméstico foram retiradas do lar e reorganizadas no mercado por meio do crescimento da indústria de serviços, que agora constitui o setor econômico dominante do ponto de vista do emprego assalariado. Isso significa que, agora, mais refeições são feitas fora de casa, mais roupas são lavadas em lavanderias ou em tinturarias a seco, e mais alimentos são comprados já prontos para o consumo (Federici, 2019, p. 224).

O trabalho reprodutivo da mulher, para a teoria feminista, se insere no Modo de Produção Capitalista (MPC), intimamente relacionado com a reprodução de uma mercadoria. A socióloga Garcia Castro (1980) avalia o trabalho doméstico não-remunerado como indispensável para o barateamento do preço da força de trabalho, a reposição (1980 apud Brisolla, 1982, p. 9). Essa situação reflete a mesma encontrada pela antropóloga alemã Verena Stolcke (1980), posto que, a universalização e “naturalização” da família visa à redução dos custos da reprodução da força de trabalho, sob a perspectiva da burguesia, obtendo de forma gratuita a contribuição das mulheres (1980 apud Brisolla, 1982, p. 9). Conforme referencia Negraes Brisolla (1982), o trabalho doméstico da dona de casa torna-se imprescindível para a reprodução dos homens e à renovação das energias despendidas no trabalho. Contudo, a reprodução física dos trabalhadores já empregados na atividade capitalista não é o único meio de assegurar a força de trabalho. Não obstante, o capitalismo consegue extrair mão-de-obra da população economicamente ativa, com isso, o trabalho doméstico não se torna o único elemento capaz de reproduzir a mercadoria força de trabalho, uma vez que “o crescimento da força de trabalho no capitalismo processa-se independente do crescimento da população” (1982, p. 24).

Sobre a última colocação, Negraes Brisolla (1982) considera que o capitalismo pode reproduzir a força de trabalho de acordo com as suas necessidades, como a introdução da tecnologia no processo de produção, na liberalização de mão-de-obra, e pela mobilização de inativos — os não pertencentes ao trabalho da esfera civil — através da “destruição de esferas não subordinadas diretamente ao capital” (1982, p. 226), como, por exemplo, o campo agrícola e a esfera doméstica. O capitalismo “capitaliza” formas de organização de produção que são indiretamente subordinadas a ele, como as formas de trabalho no campo. Para que haja uma dependência daquele trabalhador para com o capitalismo, através do salário, o trabalhador é despossuído de qualquer vínculo com a terra e os meios de produção. A parte excedente da população faz com que “seja mais reduzida a taxa de incorporação de mão-de-obra associada à taxa de acumulação”, portanto, cria-se a mercadoria força de trabalho ao mesmo tempo em que institui a demanda dessa mercadoria.

Ressalta-se que o significado de “trabalho” é o mundo do trabalho masculino do capitalismo, interpretado, portanto, como dependente da conexão entre a esfera privada e a civil. Dito isso, sendo considerado servidão doméstica ou serviço doméstico, os afazeres da dona-de-casa não são acatados enquanto trabalho, inclusive, ele não é incluído no cálculo do PIB (Produto Interno Bruto) e suas provedoras estão ausentes dos cálculos dessa força de trabalho. O salário é considerado um símbolo de troca voluntária: o trabalhador, por meio de um contrato, exerce seu trabalho em troca de um salário. No caso da trabalhadora doméstica, ela não recebe um salário, ao contrário, trabalha gratuitamente em troca de subsistência e proteção. Verifica-se em Federici (2019) algumas consequências que isso traz, a começar pela função social da família que a relação assalariada mistificou, escondendo “a extensão da subordinação das nossas relações familiares e sociais às relações de produção” (2019, p. 77). Em outras palavras, o salário não só oculta o trabalho não pago destinado ao lucro, mas esconde que o trabalho não-assalariado se torna relação de produção, “de modo que todos os momentos da vida operam em função da acumulação de capital” (2019, p. 77).

O salário e a falta dele permitem ao capital obscurecer a verdadeira duração da nossa jornada de trabalho. O trabalho aparece apenas como um compartimento único da vida, realizado apenas em momentos e espaços determinados (2019, p. 77).

Ademais, Federici (2019) enfatiza que o capital ofusca a identificação da classe trabalhadora por meio do uso do salário, mantendo os trabalhadores de todas as categorias divididos entre si, por um lado, uma “classe trabalhadora”, por outro lado, um proletariado “não trabalhador”. À vista disso, a dona de casa é considerada uma parasita, visto que, por não receber um salário em troca do trabalho doméstico e reprodutivo prestados, ela depende economicamente de alguém para sustentá-la, neste caso, o marido. Via de regra, verifica-se que o salário do marido é insuficiente para bancar as despesas da casa, bem como colocado por Carole Pateman (1988/1993, p. 205), n’O Contrato Sexual: “o salário família sempre foi mais um ideal que uma realidade”. Vorazmente, não são todos os trabalhadores do sexo masculino que têm uma família a espera de seu sustento, ao contrário de muitas mulheres que, geralmente, sustentam dependentes.

Paralelamente, há relações de poder no mercado de trabalho formal, onde as mulheres exercem funções tidas como desvalorizadas. Isso reflete em salários diferenciados sexualmente, porque se espera da mulher uma dependência em relação ao marido, em que a troca pelo seu sustento é o trabalho doméstico não pago. Acrescenta-se ainda que a desigualdade salarial no mundo do trabalho capitalista, preconizada pelo “trabalho secundário” e outros papéis subalternos desempenhados pelas mulheres, é uma maneira de garantir que estas se dediquem também à esfera doméstica. Para o capitalismo, é conveniente manter as mulheres na condição de mão de obra doméstica não paga e explorada, pois isso reduz os custos da reprodução social.

O capitalismo exerce uma violência simbólica sobre a dona de casa ao tornar a exploração do trabalho doméstico e reprodutivo invisível, até mesmo para aquelas que a vivenciam. Pierre Bourdieu (2012) argumenta que essa violência é invisível porque se manifesta por meio do habitus, ou seja, das disposições internalizadas que moldam as percepções e ações dos indivíduos de maneira inconsciente. As mulheres que se dedicam quase integralmente às atividades domésticas e reprodutivas não remuneradas não percebem a exploração que sofrem, justamente porque essa violência opera além da consciência e da vontade, manifestando-se de forma “puramente simbólica, através da comunicação, do reconhecimento ou desconhecimento, do sentimento” (Bourdieu, 2012, p. 7).

Esse fenômeno é sustentado pelo processo de socialização que as mulheres vivenciam, fazendo-as acreditar na naturalização das atividades domésticas e reprodutivas. A violência simbólica se manifesta, portanto, na divisão sexual do trabalho e na reprodução das normas sociais que associam as mulheres ao cuidado e à obediência. Conforme Federici (2019) aponta, as mulheres foram treinadas para serem cuidadoras e obedientes, o que, segundo ela, “dificulta a nossa luta dentro de casa”.

Desde que o conceito de “feminino” foi associado ao papel de “dona de casa”, as habilidades domésticas adquiridas pelas mulheres desde o nascimento passaram a definir sua identidade. Federici (2019) afirma que as oportunidades de emprego disponíveis para as mulheres muitas vezes são uma extensão do trabalho doméstico não remunerado, e o caminho para o emprego assalariado frequentemente resulta em mais trabalho doméstico.

Nos próximos capítulos, abordo a divisão sexual do trabalho e a luta pela remuneração do trabalho doméstico e reprodutivo das donas de casa, uma questão amplamente discutida por Federici (2019).

3. DIVISÃO SEXUAL DO TRABALHO

Apesar dos esforços contínuos pela dessexualização do trabalho doméstico, como a divisão mais equitativa das tarefas entre homens e mulheres, o papel reprodutivo e as responsabilidades domésticas ainda recaem desproporcionalmente sobre as mulheres. Isso ocorre devido a mecanismos estruturais que perpetuam a divisão sexual do trabalho, mantendo a distinção entre o espaço público, associado aos homens, e o espaço privado, atribuído às mulheres. A diferença anatômica, socialmente construída, torna-se um princípio fundamental que estrutura essa divisão. Bourdieu (2012) explica que a ordem social molda o espaço e o tempo dos indivíduos de acordo com um princípio de divisão que reserva o mundo público, da assembleia e do mercado, para os homens, enquanto o interior das casas e as responsabilidades reprodutivas são destinadas às mulheres. Além disso, essa divisão inclui os períodos longos e contínuos de gestação para as mulheres e os momentos pontuais de ruptura para os homens (2012, p. 18).

Federici (2019) reforça que, desde que o “feminino” passou a ser sinônimo de “dona de casa”, as mulheres carregam essa identidade, juntamente com as “habilidades domésticas”, para outros âmbitos de suas vidas, incluindo o mercado de trabalho. As oportunidades de emprego oferecidas às mulheres são, muitas vezes, uma extensão do trabalho doméstico, refletindo as funções socialmente atribuídas ao gênero. A classe dominante naturaliza essa divisão, impondo às mulheres um papel que parece eterno e inevitável. Como afirma Bourdieu, as categorias sociais são criadas a partir da perspectiva dos dominantes e aplicadas aos dominados, de modo que as mulheres veem essas divisões como “naturais”. A ordem social sexualmente estruturada “constrói o corpo como uma realidade sexuada e como um depositário de princípios de visão e de divisão sexualizante” (BOURDIEU, 2012, p. 18). Assim, as mulheres são continuamente relegadas ao espaço doméstico, e as funções que desempenham no mercado de trabalho são uma extensão de suas responsabilidades reprodutivas.

Essa divisão sexual do trabalho tem efeitos profundos e diretos na vida das mulheres. O trabalho doméstico, além de não ser remunerado, é “naturalizado” e vinculado aos atributos da “feminilidade”, o que perpetua a objetificação das mulheres. Elas são vistas como máquinas reprodutivas, condicionadas a agir de acordo com os princípios de divisão sexual e dominância. Bourdieu (2012) destaca que as posições e carreiras tradicionalmente masculinas tornam-se experiências negativas para as mulheres, que são sistematicamente excluídas desses espaços. Isso leva à autoexclusão, que Bourdieu chama de “agorafobia socialmente imposta”, na qual as mulheres voluntariamente se afastam desses campos de atuação (2012, p. 52). Esse ciclo de exclusão contribui para a manutenção da divisão sexual do trabalho, perpetuando a estrutura dominante.

Carole Pateman (1988/1993), em “O Contrato Sexual”, explora a configuração sexual dos espaços público e privado. Segundo sua análise dos teóricos contratualistas, o espaço público foi historicamente configurado como pertencente aos homens, que desempenham papéis políticos e construtivos, enquanto o espaço privado foi relegado às mulheres, associadas ao doméstico e ao não-civil. Portanto, a esfera política e pública está vinculada à “natureza” masculina, enquanto o apolítico e o privado são atribuídos à “natureza” feminina. O trabalho doméstico da dona de casa é o de uma pessoa sexualmente subordinada, “destituída de controle sobre a propriedade de sua própria pessoa, o que inclui sua capacidade de trabalho”. Mesmo quando uma mulher tem um emprego remunerado, ela continua a ser uma dona de casa, pois “torna-se uma esposa que trabalha e aumenta sua jornada de trabalho” (Pateman, 1993, p. 202).

No processo de produção de mulheres subordinadas e preparadas para a maternidade, Nancy Chodorow (1979), socióloga e psicanalista, ressalta o papel central da família. A família nuclear é um pilar da ideologia capitalista, profundamente enraizado na divisão capitalista do trabalho. A ideologia capitalista enaltece a família como um espaço particular e distinto do capital, onde a oposição entre os gêneros masculino e feminino se dissolve. Na ausência de um salário, a família é vista como um espaço de amor e companheirismo, associado ao pessoal, ao privado e ao trabalho improdutivo, em oposição ao social, à rua e ao trabalho produtivo.

Essa estrutura revela como a divisão sexual do trabalho afeta diretamente as mulheres, condicionando suas experiências e limitando suas oportunidades tanto no ambiente doméstico quanto no mercado de trabalho.

4. SALÁRIO PARA O TRABALHO DOMÉSTICO NÃO REMUNERADO ENQUANTO UMA PERSPECTIVA POLÍTICA

A reivindicação pelo pagamento do trabalho doméstico é trazido por Silvia Federici (2019) enquanto uma perspectiva política que pode abrir um novo campo de luta. A autora traz o exemplo da Wages For Housework Campaing (Campanha Internacional Salários para o Trabalho Doméstico), surgida em 1972, na cidade de Pádua. Promovido por uma rede de mulheres de base, a WfH é uma campanha de reconhecimento e pagamento por todo o trabalho doméstico e reprodutivo. Elas identificaram que a exploração da trabalhadora doméstica em seus serviços prestados, e as relações desiguais de poder sob a não remuneração, foram os pilares para a organização capitalista de produção. A campanha expôs dois aspectos centrais: 1) a desvalorização de atividades humanas, como a reprodução da vida, fundamental para o capitalismo, que depende do trabalho reprodutivo não pago para manter os custos baixos; e 2) a capacidade do capitalismo de extrair trabalho de trabalhadores considerados inativos econômicos, por meio de relações salariais que obscurecem a exploração.

Federici argumenta que o salário pago por um trabalho, além de ser uma forma de reconhecimento, expressa uma relação de poder entre o capital e a classe trabalhadora. Portanto, as mulheres podem, por meio do salário, organizar sua resistência contra o capital e recusar o trabalho gratuito que realizam. O trabalho doméstico não pago, como preparar comida, lavar roupas, limpar a casa e cuidar da família, gera valor para o capitalismo, mas é ocultado como se fosse uma atividade externa ao capital. A autora critica a esquerda por não reconhecer plenamente a opressão das mulheres no lar, tratando-a como uma exclusão das relações capitalistas e propondo que as mulheres só seriam emancipadas ao ingressar na fábrica. Essa visão cria uma segregação dentro da classe trabalhadora, onde as mulheres são vistas como coadjuvantes. Para Federici, a opressão das mulheres vai além dos portões das fábricas, pois sua dupla e tripla jornada de trabalho (doméstico e assalariado) reproduz a força de trabalho essencial para o capitalismo.

O salário demarca uma linha divisória entre trabalho e não trabalho, fazendo com que o trabalho doméstico do lar realizado pelas mulheres para o capitalismo fosse ocultado das análises e estratégias da própria esquerda, que considera que a dona de casa não sofre com o capital, mas com a ausência dele (2019, p. 64). Quer dizer, a opressão das mulheres no lar ainda é considerada pela esquerda, em sua maioria, como a exclusão das mulheres nas relações capitalistas, e a ‘’ teoria do atraso’’ da política das mulheres só será superada ao passo em que elas adentrarem aos portões das fábricas. Evidencia-se que a esquerda, em seus objetivos estratégicos e organizacionais, cria uma segregação no interior da própria classe trabalhadora, selecionando setores específicos como sujeitos revolucionários e outros ao mero papel de coadjuvantes (2019, p. 63). O trabalho doméstico não consiste em, somente, limpar a casa e fazer comida, mas servir física, emocional e sexualmente os assalariados, preparando-os dia após dia para o trabalho fora de casa, além de todo o trabalho reprodutivo que também envolve a criança da casa, em que ela é cuidada e amparada pela mãe para que, futuramente essa criança tenha plenas condições de se tornar um trabalhador.

Como resultado da utilização do salário pelo capital, a identificação da classe trabalhadora é obscurecida, dividindo os trabalhadores em dois grupos: por um lado, a “classe trabalhadora”, e por outro, um proletariado “não trabalhador”. Isso permite que o capital organize o mercado de trabalho de forma segregada, criando diferentes mercados para negros, jovens, mulheres e homens brancos (2019, p. 78), o que torna mais difícil a organização da classe trabalhadora como um todo. A relação assalariada disfarça a verdadeira função social da família, enquanto o trabalho assalariado esconde a subordinação das relações sociais das mulheres às relações de produção, transformando-as em relações de produção, onde cada aspecto da vida opera em função da acumulação de capital (2019, p. 77).

Silvia Federici (2019) destaca que o capital organizou e continua a organizar as mulheres de acordo com as divisões típicas do trabalho capitalista, seja na cozinha ou na fábrica. A luta pelo salário, nesse contexto, é uma luta contra o salário, contra o poder que ele expressa e a relação capitalista que ele representa (2019, p. 82). No caso das trabalhadoras domésticas não remuneradas, a luta pelo salário representa um ataque direto ao capital e à exploração que ele exerce por meio de longas jornadas de trabalho invisíveis e intensas.

Mais importante ainda, exigir salários pelo trabalho doméstico significa recusar a aceitação desse trabalho como um destino biológico, uma condição essencial para lutar contra ele. Como Federici aponta: “Queremos um salário para podermos dispor de nosso tempo e energia para lutar, e não para sermos confinadas a um segundo emprego por causa da nossa necessidade de independência financeira” (2019, p. 82). Dessa forma, lutar por um salário não é necessariamente um ato revolucionário, mas sim uma estratégia política que rejeita tanto a socialização da fábrica quanto a “racionalização” capitalista do lar (2019, p. 84).

A curto prazo, essa luta enfraquece o papel social atribuído às mulheres na divisão sexual do trabalho, a longo prazo, ela modifica as relações de poder dentro da classe trabalhadora, derrubando as estruturas de dominação e exploração. O reconhecimento do trabalho doméstico por meio do salário possibilita uma luta contra a reprodução de nós, mulheres, e de outros como força de trabalho. É essencial destacar que a socialização de crianças e o cuidado com as pessoas são responsabilidades sociais, e não exclusivas das mulheres. A luta pelo pagamento do trabalho doméstico faz com que aqueles que se beneficiam desse trabalho não remunerado paguem por ele e socializem essas funções. Caso contrário, continuaremos a reforçar o mito da “multitarefa”, abordado no primeiro capítulo, em que questões como afeto e cuidado são vistas como responsabilidades exclusivamente femininas e pertencentes ao espaço privado.

5. CONCLUSÃO

Como proposta de resistência à discriminação sexual e à dessocialização do trabalho reprodutivo, Silvia Federici (2019) sugere a política dos comuns como uma estratégia anticapitalista com base em uma perspectiva feminista. O conceito de “comuns” tem ganhado força entre a esquerda radical, tornando-se um ponto de convergência entre anarquistas, marxistas/socialistas, ecologistas e ecofeministas (2019, p. 304). A autora apresenta dois motivos principais para a política dos comuns ter emergido no centro das discussões dos movimentos sociais contemporâneos. O primeiro é a proposta de uma alternativa ao capitalismo, após a “derrocada do modelo estatista de revolução” que minou os movimentos radicais (2019, p. 304). O segundo é a conscientização do perigo de viver em um mundo regido pela lógica do dinheiro, diante da “tentativa neoliberal de subordinar toda forma de vida e conhecimento à lógica do mercado” (2019, p. 304). Como discutido no capítulo 2, o capitalismo consegue reproduzir a força de trabalho também em esferas indiretamente subordinadas ao capital, como exemplificado pelo processo de exclusão dos trabalhadores de seus meios de subsistência.

Os “novos cercamentos” mostram que os comuns não desapareceram e que as formas de cooperação social, ajuda mútua e solidariedade continuam sendo produzidas (2019, p. 305). Certamente, os comuns revisitam as possibilidades políticas de enfrentamento ao Estado, ao mercado e à agenda neoliberal de privatização de terras. Além disso, a ideia dos comuns resgata a função ideológica da esquerda radical, que propõe a construção de uma sociedade cooperativa. As mulheres, de maneira autodeterminada, sempre lideraram esforços coletivos “dos quais temos muito a aprender” (2019, p. 315), como forma de se protegerem da pauperização e da violência do Estado e dos homens. O primeiro passo, segundo Federici, é “tornar comum” os meios materiais de reprodução, para promover o interesse coletivo e laços de solidariedade, permitindo que o trabalho reprodutivo prospere. O segundo passo, igualmente importante, é desvincular a reprodução dos fluxos de mercadoria que causam a desapropriação de milhares de pessoas ao redor do mundo, construindo nossa subsistência fora do mercado mundial e “da máquina de guerra e do sistema prisional, dos quais a hegemonia do mercado mundial depende” (2019, p. 316).

Por fim, é por meio de uma luta política que abarque todos os efeitos da dominação — exercida através da combinação de estruturas corporificadas e objetificadas, bem como grandes instituições como o Estado e o mercado — que reproduzem a ordem social masculina e os princípios de divisão e reprodução, que poderemos caminhar em direção à equidade de gênero. É crucial que o movimento feminista não seja institucionalizado, mas incorporado em organizações autônomas, com o objetivo de transformar as pautas específicas do feminismo em pautas gerais para toda a sociedade, contribuindo para a erradicação da dicotomia de gênero e das relações de poder que essa divisão institui. A luta para destruir o papel que o capitalismo atribuiu às mulheres é essencial para acabar com a divisão sexual do trabalho e o poder masculino dentro da classe trabalhadora, através do qual o capital tem mantido sua hegemonia.

1 GARCIA CASTRO (1980), Mary Garcia Castro. ‘’ A questão da Mulher na Reprodução da Força de Trabalho’’, in Coleção Encontros com a Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, RJ — 1980.

2 STOLCK, Verena Stolck. “Mulheres e Trabalho”, in Estudos CEBRAP n.º 26, Editora Vozes, Petrópolis, RJ — 1980.

REFERÊNCIAS

BOURDIEU, P. A Dominação Masculina. 11ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012.

BRISOLLA, S. N. Formas de Inserção da Mulher no Mercado de Trabalho: o caso do Brasil. 304 páginas. Tese de Doutoramento. UNICAMP, Campinas, dez/1982.

CYRINO, R. Trabalho, temporalidade, e representações sociais de gênero: uma análise da articulação entre trabalho doméstico e assalariado. Sociologias, Porto Alegre, ano 11, nº 21, jan./jun. 2009, p. 66–92.

FEDERICI, S. O Ponto Zero da Revolução. Trad. Coletivo Sycorax. Editora Elefante, 2019.

PATEMAN. C. O Contrato Sexual. Trad. Marta Avancini — Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993.

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Brenda Dias

Graduanda em Ciências Sociais pela UNESP e Professora de Geografia Física e Política.