DESCONSTRUINDO AMÉLIA: uma proposta de análise crítica da ordem social masculina a partir das identidades femininas no Brasil nos séculos XX-XXI.

Brenda Dias
27 min readDec 10, 2020

Este artigo foi escrito por mim em coautoria com Dani Silva, que teve contribuições reluzentes e enriquecedoras. Grata, Dani, por alguns meses de aprendizados e descobertas.

RESUMO

Durante os séculos XX e XXI, apresentamos de que forma a mulher era percebida, enquanto ser-percebido pelo olhar masculino, e se percebia. Para tal, trazendo à tona a trajetória das identidades femininas entre a década de 1930 e 1960, entramos em diálogo com a música “Ai! Que Saudade da Amélia” (1942), título da canção de Mário Lago. Já no século XXI, para rompermos com a noção de mulher subalternizada, representada na figura d`Amélia, propomos uma interlocução com a música “Desconstruindo Amélia’’ (2009), interpretada por Pitty. Para uma melhor compreensão do tema exposto, têm-se, brevemente, as ondas dos feminismos que se desenvolveram no país entre a década de 1970 e 1980. Por fim, como suporte teórico teremos Pierre Bourdieu (2012) e a sua noção de androcentrismo, entendendo que o princípio de divisão fundamental entre os sexos (sic) é a motriz da ordem social à qual estamos inseridos.

PALAVRAS-CHAVE: Identidades femininas; Amélia; Feminismos; Androcentrismo; Ordem Social.

  1. INTRODUÇÃO E DESENVOLVIMENTO

1.1. A VISÃO ANDROCÊNTRICA COMO ORDEM SOCIAL

Pierre Bourdieu (2012) em seu livro “A dominação masculina”, especificamente, no capítulo: “Uma imagem ampliada”, conceitualiza a noção de “androcentrismo” e a sugere como um princípio masculino que orienta todas as coisas, desde o sexo (sic), passando pelo corpo até os habitus em diante. Tal noção propõe a existência de uma estrutura objetiva (relacionado ao ser) e uma estrutura cognitiva (relacionado ao conhecer) que apreende o mundo social em suas divisões arbitrárias, que são reconhecidas como naturais e legítimas. Possibilitando que a visão masculina seja dispensada de justificativa e sobretudo, possibilitando a visão androcêntrica de se impor como 1) “neutra” e 2) sem necessidade de enunciação. Desta forma, podemos dizer que Bourdieu (2012) realizou o empreendimento de uma “socioanálise do inconsciente androcêntrico” que iria operar pela objetivação das categorias inconscientes.

Mais adiante, no mesmo capítulo, o autor formula que o mundo social é como uma realidade sexualizada e sexualizante, articulada à construção social da visão e da anatomia dos corpos como realidade biológica, isto é, como se a biologia per se construísse uma suposta diferença entre os sexos (sic). Neste sentido, Bourdieu (2012) apresenta que a diferença anatômica entre os órgãos sexuais poderia ser vista como uma justificativa para uma suposta e natural diferença sexual entre os gêneros. Contudo, argumenta que, na verdade, há uma construção social dos órgãos sexuais e que também se aplica ao corpo. Portanto, a ordem social, calcada no androcentrismo, realiza esse princípio de divisão fundamental, e quando articulado à dimensão do desejo, apresentaria este último como posse e dominação masculina erotizada que subalterniza o feminino.

Assim, o princípio da divisão dominante inseriu nos corpos e no habitus sistemas de estruturas de disposições duradouras, servindo de suporte às taxonomias práticas que tendem a hierarquizar corpos e a contrapor as propriedades que são mais frequentes entre os dominantes e as que são mais frequentes entre os dominados. As diferenças inscritas na estrutura social só surgem quando o dominante se coloca como universal e neutro, e coloca como particular aquilo que não é ele, portanto, temos o dominante universal versus o nãodominante particular. De acordo com Bourdieu (2012): ‘’os dominados aplicam categorias construídas do ponto de vista dos dominantes às relações de dominação, fazendo-as assim, ser vistas como naturais’’. Por sua vez, o êxito das dicotomias que os dominantes inscrevem no cérebro e na objetividade das práticas dos dominados depende da 1) posição relativa do observador e do ser-percebido, isto é, daquele que percebe e daquele que é percebido e, 2) do grau de conhecimento, de reconhecimento e de submissão por aquele a quem os esquemas de percepção e de apreciação se aplicam. Podemos utilizar o esquema sinóptico das oposições pertinentes[1] como exemplo da dicotomia entre o feminino e o masculino, através de adjetivos: às mulheres por analogia a coisas como úmido, embaixo, dentro (casa, jardim); os atributos sexuais masculinos compreendem o seco, em cima, fora (assembléia, mercado).

Pois bem, os atos de conhecimento, reconhecimento e de submissão são frutos do poder simbólico da fronteira instituída entre o feminino e o masculino. Portanto, a dominação, para Bourdieu (2012) é uma violência simbólica na qual os dominados contribuem para a sua própria dominação, muita das vezes de forma inconsciente. As manifestações corporais e/ou emocionais se objetivam visivelmente na prática como forma de submeter-se, mesmo que de má vontade, ao juízo dominante. A auto-exclusão das mulheres de lugares públicos ou de funções consideradas masculinas é sinal da legitimação e subordinação concedida à dominação masculina e pelas práticas que ela determina. Do mesmo modo, como reflexo da divisão arbitrária entre o feminino e o masculino, encontramos, em seu estado objetivado, postos de trabalho fortemente sexuados, em que mulheres e homens recebem salários desiguais, mesmo quando o grau de instrução e a carga horária são semelhantes. Outro exemplo seria relacionado à esfera doméstica, na qual a divisão de tarefas é quase que inexistente, transferindo à mulher toda a responsabilidade de manutenção do lar, do cuidado com o marido e da socialização dos filhos. A limitação simbólica do universo feminino, que visa excluir as mulheres dos espaços públicos, também é uma violência simbólica, e, da mesma maneira, o constrangimento social a que elas estão submetidas em decorrência, por exemplo, do comprimento da roupa, não raro vivenciando casos de assédio e opiniões que as definem como mulheres de respeito ou levianas.

Em síntese, a dominação masculina tem um caráter arbitrário e dissimulado, dispensando a necessidade de legitimação. Através de um ‘’trabalho de socialização’’[2], os símbolos incorporados e fortemente enraizados, tanto na nossa forma de pensar quanto de conceber o mundo, são naturalizados pelos agentes. A dominação simbólica não se institui sem uma adesão dos dominados aos dominantes e, portanto, à dominação. Os dominados não dispõem além de instrumentos de conhecimento estruturados segundo a oposição entre o feminino e o masculino, engendrando nas consciências uma relação naturalizada das dicotomias em todas as áreas da ordem social. Por este motivo, investigar como a dominação masculina se dá na sua forma simbólica implica em um trabalho de desnaturalização, melhor dizendo, historicizar o natural reconhece que tudo o que está como que ‘’na ordem das coisas’’ tem um começo, um princípio. É conseguir identificar, também, que a dominação exercida sobre os corpos dos agentes é graças a mecanismos que contribuem para a sua dominação[3].

1.2. SOBRE IDENTIDADE, IDENTIFICAÇÕES, PERFORMATIVIDADE E ‘’SUJEITAS’’

Para seguirmos adiante, é importante compartilhar algumas noções para a melhor compreensão dos nossos objetivos ao tratar das questões de gêneros. Sendo assim, propomos apresentar algumas noções quando nos referimos ao “comportamento”, “identidade”, “mulher”, “corpo”, para citar algumas. Logo, pretendemos uma inflexão do nosso idioma e da linguagem para pensarmos brevemente sobre os sexismos e as dinâmicas das estruturas sociais e linguísticas como substancialistas ou androcêntricas e, portanto, alvos de críticas produtivas para os nossos objetivos e cotidiano.

Desta forma, compreendemos que, ao utilizarmos a palavra “comportamento(s)” e “identidade(s)”, estamos nos referindo à noções que não necessariamente se correspondem, porque estão abertas como possibilidades de identidades e (auto)identificações singulares, plurais e situadas historicamente e, aqui, em específico, identidades, entendidas por nós, como inseridas na história dos anos 1930 e 1960 como sendo “vitorianas” e/ou “renovadas”.

Portanto, nos aproximamos da noção da “performatividade’’, isto é, a maneira como os corpos mostram ou produzem as suas significações culturais. Então, sugerimos as seguintes utilizações: “perfomatividade da mulher vitoriana” e “performatividade da mulher renovada”, para não cairmos no terreno problemático tanto da noção determinista da biologia sobre o corpo, produzindo uma suposta natureza da “mulher”, quanto do corpo como um espaço estável e linear, no qual a genitália corresponderia ao sexo (sic) que corresponderia ao corpo em diante.

Ademais, em diálogo com Butler (2017), propomos a compreensão do “termo mulher” como uma categoria não fixa e historicamente situada. Por um lado, associada tanto como uma “performatividade vitoriana”, enquanto uma performance que atua dentro de padrões sociais conservadores, e, por outro lado, como uma “performatividade renovada”, portanto combativa e atuando como sujeito-agente. Sendo válido dizer que, as demais características seguem abaixo ao longo deste artigo.

Por fim, este exercício de reflexão e inflexão, para ilustrar os nossos objetivo, é uma proposta possível para pensar sobre e nas demandas emergentes dos e nos movimentos das mulheres e sobretudo, sobre e com as mulheres, os corpos e os gêneros, como plurais, ou ainda performatividades que mais “estão” do que “são”. “Estão” para se referir historicamente as identificações com as feminilidades que não “são” estáveis, lineares e/ou fixas como se querem forjar os conjuntos de saberes e poderes dominantes.

O PROCESSO DAS IDENTIDADES FEMININAS NO BRASIL

1.1. O PERIGO FEMININO: DA MULHER VITORIANA À MULHER RENOVADA

Compreendendo as possíveis influências da Era Vitoriana, comecemos por ressaltar a performatividade das mulheres que denominamos de ‘’vitorianas’’, nos referindo àquelas entre a década de 1930 e 1960, no Brasil, cujo contexto social foi marcado pelo forte moralismo sexual e social e por rígidos costumes. A partir dos críticos, a análise feita é que a Era Vitoriana (1837 a 1901) consagrou o pensamento conservador, definiu fronteiras extremamente estreitas nas definições dos papéis sociais, e, por meio de um processo de individuação, a mulher se via em uma posição subalterna em relação à figura masculina. Às mulheres que ousavam falar de transformação social, ou que tinham comportamentos divergentes do esperado da ‘’mulher vitoriana’’, eram diagnosticadas como histéricas. A performance vitoriana foi apegada aos costumes e valores tradicionais e cercada pela intimidação da ordem social quando se tratava de mudanças estruturais que viriam privilegiar as mulheres. Vistas como a ‘’rainha do lar’’, tanto à época vitoriana quanto à sociedade brasileira do século XX, o conceito de ‘’feminilidade’’ é muito valorizado e relacionado à figura feminina que desempenhava ‘’corretamente’’ os papéis sociais, portanto, estava associado à ideia de ‘’bela, recatada e do lar’’.

A modernidade no Brasil — final do século XIX e início do século XX — influenciou o mercado consumidor e o modo de vida brasileiro, a exemplo dos costumes sociais. Por detrás do obscurantismo da ascenção da modernidade, às mulheres obtiveram maior flexibilidade de deslocamento para além dos muros domésticos, todavia, os costumes conservadores continuavam fortemente enraizados e às mulheres eram o alvo principal dos discursos que viriam a legitimá-las ou a negligenciá-las. Assim sendo, ao longo dos séculos XX e XXI, a classe dominante masculina realizou um incessante trabalho na constituição e reorganização do espaço urbano, no intuito de normatizar e disciplinar comportamentos. Portanto, com a inserção progressiva das mulheres na esfera pública, sobretudo no mercado de trabalho, tornou-se evidente a construção, ou melhor, a redefinição das imagens que remetem à preocupação em torno do ‘’perigo feminino’’, que colocavam a vida conjugal e, consequentemente, a mulher sob suspeita. Propagava-se a ideia de que a inserção da mulher no mercado de trabalho ou na política, acarretaria em um abandono ou desinteresse pela vida conjugal e pela maternidade, afrouxando os laços familiares.

Estas premissas apontam que havia dois tipos de performances coexistentes: 1) a

‘’vitoriana’’, performada na mulher privada, e 2) a ‘’renovada’’, performada na mulher pública, esta última reputada como o ‘’perigo feminino’’. Por um lado temos o exemplo de mulher destinada à esfera privada: bela e recatada, ocupava-se das atividades domésticas, além de ser, também, companheira e submissa, não ousando contestar o marido. Por outro lado, trazemos a mulher pública: simbolizada na imagem da mulher moderna, liberada, que fumava em público e dirigia automóveis; totalmente desmoralizada pela ordem social. Também apontada como vulnerável, objeto e um perigo a ser evitado pelos homens. Mas, antes da ascensão do ‘’perigo feminino’’, como as mulheres se ‘’comportavam’’? Ou melhor, como performaram suas identidades e desempenharam suas tarefas e funções que, por sua vez, eram muito bem delimitadas pelo princípio de divisão fundamental entre os sexos (sic)? Convidamos à pessoa leitora a percorrer, conosco, este caminho de descoberta das performances performadas pela pluralidade de mulheres, através de duas canções que trouxemos à baila.

ANÁLISE DAS MÚSICAS

1.1. AI, QUE SAUDADE DA AMÉLIA

A mulher foi destinada, historicamente, a ocupar somente um lugar na sociedade: a esfera privada. Suas virtudes estão localizadas abaixo ou depois dos atributos atribuídos aos homens, sendo vistas, desta forma, como o oposto que é negativo e sem direito de contestação. Imbuídas de afazeres domésticos e situadas longe do mercado de trabalho, sua principal missão é cuidar dos seus, e, quando este dever é violado, o patrão, na figura do esposo, revolta-se. Ao destrincharmos a canção Ai! que saudade da Amélia, de Mário Lago (1942), faz-se presente a figura de um homem cansado das transgressões da esposa que, fazendo súplicas ao divino, também representado na figura masculina, sente falta da Amélia que se foi.

Veja a letra na íntegra:

Nunca vi fazer tanta exigência

Nem fazer o que você me faz

Você não sabe o que é consciência

Não vê que eu sou um pobre rapaz

Você só pensa em luxo e riqueza

Tudo o que você vê, você quer

Ai meu Deus que saudade da Amélia

Aquilo sim que era mulher

Às vezes passava fome ao meu lado

E achava bonito não ter o que comer

E quando me via contrariado dizia Meu filho o que se há de fazer

Amélia não tinha a menor vaidade

Amélia que era a mulher de verdade

O significado de Amélia vem carregado de adjetivos como ‘’trabalhadora’’, ‘’ativa’’, ‘’diligente’’[4], substantivos como ‘’falta de membro’’, ‘’mulher passiva’’, ‘’mulher servil’’ ou ‘’mulher amorosa’’[5], ou sinônimos como ‘’empregada’’, ‘’lar, ‘’dona de casa’’6. Observamos que, a Amélia dentro da ótica conservadora, machista e androcêntrica foi talhada para obedecer, limpar e principiada a isolar-se atrás das grades e dos muros, isto é, a educação que esta recebe é voltada à esfera privada, ao cuidado da família e do bem-estar da mesma, mediante o trabalho doméstico.

A respeito dos versos apresentados, a letra descreve o que era o ideal de mulher privada, que em algum momento da canção e da história, deixa de ser. Portanto, a ‘’Amélia de verdade’’ é extremamente preocupada com o marido e filhos e com o bem-estar dos membros de sua prole; dedicada em agradar o esposo; sempre submissa às suas ordens; não fazia exigências, não reclamava, não desobedecia. Ao quebrar com os padrões e normas conservadores prescritos a ela, a mulher passa a ser classificada como ‘’sem consciência’’, pela falta do outro, sendo um indivíduo negativo e sem virtudes, por essência sem nome e nem identidade. Por outro lado, o homem, representado na figura do chefe da casa, desdobrase em uma jornada estressante de trabalho para manter o lar, alimentar os filhos e vesti-los, e sustentar os ‘’luxos’’ da esposa, sendo considerado, portanto, um ’’pobre rapaz’’. Enquanto somente o homem é passível de pena e qualificado como esforçado, a mulher, principal mantenedora do lar, é vista como fútil, ingrata, inconsciente, desqualificada, e o trabalho doméstico realizado por ela, invisibilizado.

O sentimento saudosista presente na canção — sinalizado por meio de verbos empregados no passado (‘’era’’, ‘’passava’’, ‘’achava’’, ‘’via’’, ‘’tinha’’) e, também, através do título, ‘’Ai, que saudade da Amélia’’ — faz alusão à esposa que não é mais uma ‘’mulher de verdade’’, em outras palavras, que deixa de ser uma ‘’Amélia’’, dando espaço para uma nova performance, agora mais revigorada. O eu-lírico enaltece a ausência de vaidade da esposa, e, através da romantização do mesmo no verso: ‘’às vezes passava fome ao meu lado’’, constatamos uma opressão/submissão, confirmando a privação de liberdade da cônjuge impedida de atuar no mercado de trabalho. Portanto, vislumbramos um ambiente doméstico expressamente machista e patriarcal, em que, mesmo em circunstâncias de vulnerabilidade socioeconômica no interior familiar e diante do aborrecimento do marido com a situação presente, a mulher não pode fazer outra coisa senão submeter-se a ele e apoiá-lo — ‘’meu filho, o que se há de fazer’’ -, dispondo de compaixão e solidariedade.

Através do verso proferido pela esposa: ‘’meu filho, o que se há de fazer’’, notamos uma naturalização da mesma frente à miséria no interior familiar e os ditames sociais androcêntricos de que a mulher não pode trabalhar. Indo de encontro com a teoria bourdiana, esta naturalização deriva de uma experiência direta com a ordem social androcêntrica, que incorpora nos corpos princípios da divisão dominante, através de esquemas de visão e de divisão, ‘’sexualmente’’ ordenada. Logo, as divisões que derivam da ordem social posicionam a mulher sempre ao privado, aos trabalhos domésticos, ratificando, portanto, um processo ‘’natural’’ de que as mulheres são, simplesmente, um suporte para o homem, não o agente.

Ao passo em que aquela mulher, antes submissa às vontades e desejos do marido, que se colocava em segundo plano, busca reivindicar por seus direitos e abdicar da família ou deixar à cargo de outrem, eliminando sua responsabilidade integral pelas atividades domésticas, ela é transformada em uma pessoa mesquinha, avarenta e alienada, influenciada pela modernidade e sujeita à vontade alheia do mercado consumidor, tornando-se escrava, portanto, não mais (ou não só) do marido, mas da indústria da beleza. A exposição é confirmada através dos versos: ‘’você só pensa em luxo e riqueza/ tudo o que você vê, você quer’’. Além disso, examinamos a conduta do eu-lírico como uma forma de ‘’reação patriarcal’’ à medida em que a sua dominação estava sob ameaça, quase que anulada. Portanto, um dos subterfúgios do dominador, como estratégia de dominação, foi desvalorizar e inferiorizar a dominada, transformando-a em um animal irracional, que ‘’não sabe o que é consciência’’.

Destarte, analisando o período em que a música foi lançada, 1942, e observando as identidades performadas na década de 1930 pelas mulheres, a instabilidade da imagem e do

‘’comportamento’’ feminino tradicional e conservador cada vez mais intensificava-se. Em outras palavras, a preocupação social em torno do colapso da performance da ‘’mulher vitoriana’’ e da ausência das atividades domésticas enquanto mão-de-obra qualificada e não remunerada, da falência da instituição familiar e, consequentemente, da indústria casamenteira, eram preocupações que assolavam a ordem social. As estruturas familiares, pouco a pouco, abalavam-se, o que não significou e nem significa o fim da família. O que as feministas vieram a questionar, e ainda questionam dentro de suas discussões, era o molde tradicional e conservador em que a família estava inserida, que visa à subalternização da mulher e à dominação masculina, como, também, à responsabilidade integral da mesma frente aos trabalhos domésticos e à educação dos filhos.

Logo, mais tarde, a mulher da década de 1930, responsável por cumprir os papéis sociais impostos a ela, de acordo com o princípio de divisão fundamental entre os sexos (sic), ditados pela ordem social masculina, conservadora e machista, realiza um contra-programa, buscando romper com o jogo que as aprisionava. Portanto, pode-se dizer que os padrões de comportamentos antes inquestionáveis, vistos como que ‘’na ordem das coisas” e aceitos de maneira ‘’passiva’’ pelas mulheres, com o ressurgimento do movimento feminista, na década de 1960 e 1970, esses padrões passaram a ser fortemente interrogados. Assim, a desconstrução da Amélia transforma-a, ou melhor, a reconstrói em uma mulher voltada ao público, ao mercado de trabalho e ao espaço político. Essa ‘’nova mulher’’, agora mais segura de si, torna-se combativa, sujeito-agente da ação social e com sede de transformação, buscando, por meio da luta, denunciar o jogo dominante que as aprisionava.

Com isso, ao que tange à desconstrução da imagem da Amélia, discorreremos sobre a canção Desconstruindo Amélia (2009), buscando trazer à luz a performance da mulher na modernidade, interseccionando com o ressurgimento do feminismo no Brasil, na década de 1960/70. A canção é faixa 7 do álbum Chiaroscuro (2009), composta pela rockeira baiana Pitty, em parceria com Martin Mendonça, guitarrista da banda desde 2005. As canções de Pitty têm um caráter muito provocativo e crítico à sociedade. Desde 2003, ano de lançamento do primeiro álbum da artista, presenciamos diversos temas ao longo de sua carreira, tais como: a crítica à sociedade capitalista; transformação social; resistência; relacionamentos e a ideia de posse/propriedade; feminismo e a imposição de papéis sociais; identidades; etc.

1.2. DESCONSTRUINDO AMÉLIA[6]

Já é tarde, tudo está certo

Cada coisa posta em seu lugar

Filho dorme, ela arruma o uniforme

Tudo pronto pra quando despertar

O ensejo a fez tão prendada

Ela foi educada pra cuidar e servir

De costume esquecia-se dela

Sempre a última a sair

Disfarça e segue em frente

Todo dia, até cansar

E eis que de repente ela resolve então mudar

Vira a mesa,

Assume o jogo

Faz questão de se cuidar Nem serva, nem objeto já não quer ser o outro

hoje ela é um também

A despeito de tanto mestrado

Ganha menos que o namorado

E não entende o porquê

Tem talento de equilibrista ela é muitas, se você quer saber

Hoje aos trinta é melhor que aos dezoito

Nem Balzac poderia prever

Depois do lar, do trabalho e dos filhos Ainda vai pra night ferver

Disfarça e segue em frente

Todo dia, até cansar

E eis que de repente ela resolve então mudar

Vira a mesa,

Assume o jogo

Faz questão de se cuidar Nem serva, nem objeto já não quer ser o outro

hoje ela é um também

Nota-se na letra da canção a centralidade na figura da mulher trabalhadora. Não raro, o cotidiano das mulheres, tratando aqui em específico das mulheres brasileiras, acumula uma dupla jornada de trabalho, em outras palavras, ao chegarem de uma rotina extensa de trabalho extra lar, desempenham as atividades tradicionais domésticas. Entretanto, o conceito de trabalho difere em seus significados de acordo com a camada social a que pertencem as mulheres e, consequentemente, seus arranjos e posicionamentos políticos e ideológicos.

Gomes (2008) afirma que, no Brasil, a mulher “comportava-se de acordo com a sua classe social”.

Assim sendo, visto que conciliar a vida profissional e a vida familiar fazia-se extremamente laborioso, o trabalho remunerado, para as mulheres das classes populares, era uma pauta secundária em relação à esfera doméstica, tendo em vista que o seu cotidiano era limitado por atividades realizadas no âmbito privado. Por outro lado, às mulheres pertencentes à classe média consideravam o trabalho doméstico como opressivo, entretanto, devido aos recursos financeiros disponíveis, elas tinham a possibilidade de contratar empregadas domésticas, substituindo-as, parcialmente, destas funções, transformando o trabalho realizado no mundo privado menos árduo e exploratório.

Isto posto, o significado de ‘’trabalho remunerado’’ é uma condição sine qua non para uma parcela significativa da sociedade, enquanto, para outra parcela ínfima, é uma condição de “escolha’’ da profissão e “realização” de um projeto individual de vida. Isto evidencia que as diferenças estruturais de classe traduzem-se na escolha de se ter ou não um “trabalho remunerado” e na obrigação de se ter um “trabalho remunerado por sobrevivência”. Nestas circunstâncias, as mulheres dos estratos mais elevados da sociedade, tendo um grau mais alto e algum nível de formação profissional, em comparação às mulheres das camadas populares, poderiam exercer atividades profissionais remuneradas de maneira mais gratificante, isentas da preocupação de exercer uma dupla jornada — como era (e ainda é) a realidade de muitas mulheres brasileiras.

Com a crescente urbanização das cidades e a industrialização, novas oportunidades de trabalho e perspectiva de vida surgiram no horizonte das mulheres, ao mesmo tempo, essa inserção não significou o fim e nem a diminuição da responsabilidade das mesmas na manutenção de sua prole. Não raro de se ver, as mulheres tendem a ganhar menos que os homens, mesmo quando as funções realizadas por elas são proporcionais às desempenhadas pelos homens. Um dos motivos que justifica a problemática da desigualdade salarial é, em grande parte, porque o trabalho remunerado que as mulheres exercem ainda é considerado ‘’complementar’’ ao do marido, indo de encontro com argumentos fortemente moralistas que tendem a ratificar a não participação da mulher na esfera pública atrelado à manutenção do lar.

Na letra da canção de Pitty (2009), ao narrar a questão que ressaltamos anteriormente referente às diferenças salariais, observamos, através do verso: ‘’a despeito de tanto mestrado/ ganha menos que o namorado/ e não entende o porquê’’, uma violência

estritamente simbólica na qual trata Bourdieu (2006). Portanto, a igualdade formal de direitos entre homens e mulheres, contida no primeiro inciso do Artigo 5º da nossa Constituição Federal de 1988[7], tende a mascarar a permanência de estruturas invisíveis que ainda reproduzem as desigualdades e, portanto, hierarquiza corpos, legitimando a dominação masculina sobre as mulheres e a subalternização das mesmas em todas as esferas de sua vida, incluindo a profissional. Com isso, percebemos que a mesma relação de dominação exercida no interior das casas tende a se reproduzir sob diferentes formas, com outras roupagens mas com o mesmo ‘’conteúdo’’, nas esferas do espaço público ao que tange à participação da mulher.

Indo mais adiante, descortinamos algumas características do feminismo de ‘’segundo onda’’ na letra da canção de Pitty (2009), em que a cantora traz duas palavras-chave: ‘’Outro’’ e ‘’Um’’, dialogando diretamente com o pensamento de Simone de Beauvoir, em ‘’O Segundo

Sexo’’ (1970):

Vira a mesa, assume o jogo

Faz questão de se cuidar

Nem serva, nem objeto

Já não quer ser o outro

Hoje ela é um também

Beauvoir (1970) e a ideia do Outro trouxe uma contribuição significativa para a luta feminista, em meados da década de 1970, com o entendimento de que a mulher é vista pelo olhar masculino como o Outro, vendo a si mesma desta forma através da experiência com o meio social à qual está inserida. Portanto, ela não é reduzida à condição de objeto por uma determinação biológica, mas cultural. Logo, o meio social define a sua experiência de se ver enquanto um objeto, como o Outro que é, por sua vez, negativo, já que toda a ordem social tende a privilegiar os homens e a desclassificar às mulheres, com isso, a propensão é incorporarem a visão masculina e a olharem para si mesmas como algo redutível. Para Beauvoir (1970), a mulher só se liberta a partir do momento em que ela se vê como sujeitoagente da ação social. Para tal, faz-se necessário uma incorporação do olhar do Outro masculino, que a transforma em objeto, para ver a si mesma como um objeto. A partir deste momento, da incorporação do Outro, elas transformam-se em sujeitos, visto que um objeto não pode ser para outro objeto. Por fim, ao usar como lente o olhar alheio do Outro, elas conseguem deixar de ser o Outro tornando-se o Um, isto é, deixam de ser objeto e tornam-se sujeitos.

Portanto, encaramos o processo da mulher de se ver enquanto o “Outro”, transformando-se em o “Um”, algo transformador e necessário. O jogo dominante, para além de aprisionar as mulheres, fabrica diversos papéis em que elas estão coagidas, por diversos lados, a desempenharem. Questionar os papéis sociais, as funções, os estigmas, a dominação masculina, o machismo, o sexismo e diversas outras formas de opressão nos diversos campos sociais, é subverter o jogo dominante, é historicizar o natural devolvendo o caráter arbitrário das diferenças entre os sexos (sic), que hierarquiza corpos, os aprisiona e os delimita. Por fim, finalizamos este tópico bem como Pitty concluiu na letra de sua canção: ‘’nem serva, nem objeto. Já não quer ser o outro, hoje ela é um também’’.

1.3. MOVIMENTO DAS MULHERES OU MOVIMENTOS FEMINISTAS? UM BREVE HISTÓRICO DAS LUTAS E DOS MOVIMENTOS SOCIAIS DAS MULHERES DOS ANOS 1970 e 1980 NO BRASIL

É nos anos da década de 1970 que o movimento feminista de ‘’segunda onda’’, ou movimento de mulheres, ressurge. Algumas narrativas afirmam que o movimento feminista manifestou-se após 1975, com o início da Década da Mulher, estabelecida pela ONU, contudo, algumas reivindicações políticas já vinham sendo levantadas, como o direito de ler e escrever, pela ‘’liberação das mulheres’’, pela abertura de creches, pela anistia aos presos políticos, etc.

Neste mesmo período, assistimos a um levante dos movimentos sociais em oposição ao regime repressivo da ditadura civil-militar (1964–1985), como o movimento LGBT+ e o movimento negro. Sobretudo, os movimentos sociais articularam-se na luta pela redemocratização do país, como também à falta de moradia provocada pelo ‘’milagre econômico’’, promovido pela ditadura Civil-Militar (1964–185). Um dos lados obscuros do ‘’milagre econômico’’, por sua vez ignorados, foi a inexistência de uma política habitacional que agravou a pobreza e a questão da falta de moradia, multiplicando, portanto, as favelas, efeito do êxodo rural que ocasionou o inchaço das cidades com o grande número de pessoas que iam em busca de melhores condições de vida aos grandes centros urbanos. Tendo vista, os movimentos sociais, para além de suas pautas específicas, organizaram-se, também, em torno das demandas gerais, como saneamento básico, saúde, regularização fundiária.

Ao que tange ao movimento feminista da década de 1970, elas enfrentaram alguns problemas de inserção entre os partidos e organizações de esquerda. Visto que a ideologia marxista-masculino era predominante nesse período, e as questões relativas ao proletariado e às condições de trabalho eram priorizadas, as mulheres, ao tentarem reivindicar pautas específicas, como discussões acerca das condições sexuais femininas, distanciavam-se, cada vez mais, dos debates políticos dentro da esfera pública; para além de outros problemas, como o próprio poder masculino dentro das organizações de esquerda que impedia a participação plena das mulheres em pé de igualdade com os homens nos movimentos sociais. O movimento em si mal se fazia ouvir, portanto, elas tiveram que encontrar novas formas de levantar pautas que fossem abraçadas pelas organizações e partidos de esquerda. Nesse sentido, a questão de classe era a peça-chave para que o movimento feminista, na época, ganhasse corpo, voz, espaço e legitimidade. É nisso que a figura da mulher proletária tornase central. O trabalho feminino era um tema permitido e aceito por todas e todos, e com isso evitava-se, também, questões polêmicas, como aborto ou sexualidade, sobretudo diante da Igreja Católica, grande aliada do movimento, que liderava as lutas de oposição. Com isso, Sarti (1988, p.40–41) descreve: ‘’ […] a ênfase na mulher trabalhadora vinha de uma tendência do movimento feminista que acreditava ser essa mulher a agente principal da transformação feminista, aquela sobre quem recai uma dupla opressão, de classe e de gênero’’[8].

Cynthia Sarti (1988) apresenta uma trajetória histórica do feminismo no Brasil com as suas especificidades e fatos gerais e marcos históricos e políticos importantes desde o surgimento até a consolidação/cisão das/nas questões das mulheres. Bem como, propõe o “movimento feminista” ou “das mulheres” como receptor de tal dicotomia em função da heterogeneidade interna no movimento social das mulheres que viria a se acentuar no país no início dos anos 1980. Isso é relevante tanto para a sua análise histórica quanto como ferramenta política, ou seja, tanto para localizar os marcos do surgimento dos movimentos no Brasil até a sua consolidação ou cisão interna que orienta politicamente os interesses atuais. Dessa forma, podemos compreender o acúmulo histórico do movimento social das mulheres, iniciado a partir da busca pela unidade, e as suas implicações nas dinâmicas do presente tanto político quanto social, marcado pela setorização. Se por um lado, a tendência do feminismo só foi se afirmando a partir da definição de um sujeito e agente transformador, na figura da mulher trabalhadora, por outro lado, o movimento feminista se consolida no final dos anos de 1970 imbuído da dicotomia: luta geral versus luta específica, algo que, segundo a autora (1988), perde força ao longo dos anos.

Para tal, Cynthia (1988) menciona alguns marcos históricos importantes para o movimento feminista, para citar três: 1) I Congresso Nacional de Mulheres Rurais (1968) que afirmaria a importância e a atuação politicamente ativa das mulheres, também, na questões rurais que teriam como reivindicações, entre muitas, a exigência da outorga do título da posse da terra às mulheres, sejam elas solteiras ou não; 2) 2º Congresso da Mulher Paulista; 3)

Centro de Defesa dos Direitos da Mulher (MG, 1980), como parte da intensa mobilização das mulheres ao longo do fim dos anos de 1970 e início dos anos de 1980. Trata-se, portanto, do período da retomada ao país de algumas mulheres com a experiência do exílio político, acontecimento que iria influenciar o movimento brasileiro. Tal influência marcou internamente o movimento pela ascensão da heterogeneidade social das lutas políticas, consequentemente, dificultando a unidade no movimento das mulheres.

Com isso, no início dos anos de 1980, o movimento como unidade política sofre uma cisão que indica, de um lado, o movimento das mulheres, de outro, o movimento feminista. Tal cisão implica na acentuação da heterogeneidade social das lutas, cuja característica principal, entre muitas coisas, é a forte presença do elemento técnico e profissional que iria esvaziar o movimento em torno da opressão sexual (sic) feminina, segundo a autora (1988).

Em contraposição à unidade em torno de princípios gerais, os anos de 1982 em diante são caracterizados pela atuação mais setorizada. Segundo Sarti (1988), tal mudança seria decorrente da entrada incipiente tanto das questões feministas e das mulheres quanto das próprias mulheres nos órgãos públicos governamentais de poder. Trata-se do momento histórico em que outras questões emergem junto às pautas das mulheres e feministas, isto é, as questões indígenas, as questões negras e dos homossexuais (na época). Já em 1984, aconteceram as campanhas pelas Diretas-Já que culminaram na eleição do primeiro presidente, José Sarney, após 21 anos de ditadura civil-militar. Segue-se com a criação do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (1985) como marco histórico e, sobretudo, concreto das ações políticas dirigidas às mulheres. Nesse sentido, Sarti (1988) argumenta quanto à importância, dentre seus limites e possibilidades, da Assembleia Constituinte de 1986 como marco democrático no país que ainda permanece com resquícios do autoritarismo do período anterior, isto é, 1964. Assim, a sua importância se deve pela presença inédita de uma bancada feminina, marcadamente heterogênea e com influências políticas diversas. Trata-se de uma bancada com sua maioria política de esquerda e com sua primeira deputada negra.

CONCLUSÃO

Levando em consideração as discussões apresentadas, podemos dizer que o movimento das mulheres aconteceu pari passu à política institucional oficial, não havendo um diálogo ou inter-relação específica, embora observasse a criação de órgãos governamentais que visassem dar conta das questões das mulheres. É importante salientar, conforme Cynthia Sarti (1988), que a elaboração da Constituição de 1988 recebe interferências políticas das mulheres, que tiveram ou não atuação na arena política, isto é, relacionaram-se ou não com as militâncias políticas, possuíam ou não militâncias partidárias e/ou feministas. No entanto, prevalece o peso significativo do movimento social das mulheres em trazer à tona as discussões ao nível do Congresso Nacional. Em razão disso, concordamos com a autora

(1988) ao argumentar que, o feminismo se institucionalizou devido à aparelhagem de Estado com o reconhecimento, legitimidade e significação sobre as demandas e decisões políticas postas em detrimento do movimento social ao nível da sociedade civil.

Dado o exposto, até que ponto a institucionalização dos movimento feministas cabe dentro das pautas específicas de sua agenda? Quais são as chances da democracia representativa abraçar os ‘’novos sujeitos, sujeitas e ‘’sujeites’’ que surgiram a partir não só do movimento de mulheres, mas dos movimentos sociais em geral? O Estado é um meio para a emancipação feminina? O intuito dessas indagações não é apagar o histórico de atuação do movimento de mulheres no Estado, que pôde, inclusive, proporcionar a criação ONGs e a sua participação nas políticas públicas, mas nos interrogarmos se as demandas específicas dos movimentos feministas, e sociais em geral, têm um certo limite ao atuarem no aparelho estatal.

No Brasil, especificamente, se vemos perpetuar até os dias de hoje antigas estruturas da divisão sexual é porque os homens continuam dominando o espaço público (político, econômico e de produção), e para as mulheres ainda fica relegado à esfera doméstica ou a extensão deste espaço, como os serviços sociais. Neste momento, cabe uma atenção dos movimentos feministas direcionada à luta pela ‘’igualdade’’ de gênero por vias reformistas, reconhecendo que o universalismo, ‘’garantido’’ pelo Direito Constitucional, não é tão universal quanto parece. É através de uma luta política voltada para todos os efeitos da dominação — exercidas na combinação entre as estruturas incorporadas e objetivadas, e nas grandes instituições, como o Estado, responsáveis por reproduzir a ordem social masculina e os princípios de visão e de divisão — que caminharemos rumo à equidade entre os gêneros. Propomos não a institucionalização do movimento, mas a sua incorporação em organizações autônomas que tenha por objetivo transformar as pautas específicas em pautas gerais à toda a sociedade, erradicando, portanto, a hierarquização instituída entre os movimentos sociais e, consequentemente, de pautas levantadas pelos mesmos.

Nesta ocasião, antes que a pessoa leitora levante a hipótese de que a escrita vai de encontro com um posicionamento radical de cisão dos movimentos feministas para com o campo político do Estado, propomos a importância da incorporação de um programa político dentro de organizações em que os movimentos feministas estão inseridos, para que não haja um esgotamento do movimento em si mesmo. Portanto, recorrer ao Estado somente a curto prazo, buscando atender às pautas reivindicativas mais urgentes, mas não perdendo de vista o objetivo final (a longo prazo), que é a luta, apartada do Estado, do desaparecimento da dominação masculina e, consequentemente, o aparecimento da emancipação feminina.

Neste último momento, realizaremos algumas críticas possíveis dos atributos conceituais da teoria de Pierre Bourdieu e, também, acerca do texto de Cynthia Sarti, utilizado por nós neste artigo. A começar por Bourdieu (2012), o autor, ao se referir ao inconsciente androcêntrico como regulador e instituidor da ordem social masculina que subalterniza o feminino, parece reforçar uma dicotomia dos aspectos binários de gênero, como se os atributos tanto masculinos (p.e: ativo, em cima) quanto femininos (p.e: passivo, em baixo) fossem estáveis, desconsiderando a possibilidade de tais atributos como parte de um aspecto não-binário, por exemplo.

Desta forma, ao atribuir determinadas características como “masculinas” ou

“femininas” como pré-suposições fixas dos “homens” ou das “mulheres”, o autor reforça o impacto do argumento problemático do determinismo biológico do sexo (sic), o que implica em uma série de complicações para os corpos que não são ou estão necessariamente identificados como “homens” ou “mulheres”, ou que não se identificam com a sua genitália e o gênero associado à ela, ou pessoas intersexos, para citar alguns exemplos. Portanto, ao interpretar um corpo e atribuir características como se fossem “masculinas” ou “femininas”, Bourdieu (2012) reafirma os interesses do próprio status quo em manter uma divisão e, sobretudo, uma hierarquia entre os corpos. Além disso, contribui problematicamente com uma visão essencialista dos gêneros nos corpos.

Ao que tange à Cynthia Sarti (1988), consideramos que a autora deu pouca atenção à opressão racial. Conscientes dos limites e das possibilidades temporais da análise situada do movimento das mulheres e/ou feministas proposto por ela e suas escolhas dos tópicos apresentados, observamos atentamente a ausência de alguns elementos relevantes para uma análise crítica e ampla. Quais são os impactos, portanto, que isso provoca ao propor um texto sobre a construção dos movimentos das mulheres e/ou feministas? Não estamos nos referindo a uma hierarquia de opressão, isto é inexistente, estamos nos referindo a uma postura política que desconsidera elementos estruturais e importantes para uma análise dos movimentos sociais das mulheres e/ou feministas ao reproduzir, portanto, o próprio statuo quo.

Por fim, tendo em vista tais críticas e seus limites, propomos apresentar, ao longo de todo o artigo, o processo de construção e desconstrução, não necessariamente nesta ordem, de uma história possível das identidades femininas entrecruzadas com as ondas feministas entre a década de 1960/70. No caso, isso foi possível a partir da construção histórica das ‘’sujeitas’’ femininas em diálogo com as figuras das “Amélias.” Para tal, utilizamos a canção de Mário Lago (1942) e de Pitty (2009), em que foi executável apresentar o processo de subversão feminina frente à uma ordem social androcêntrica que buscava, e ainda busca, cercear às mulheres aos papéis sociais, por sua vez, conservadores. Mediante o exposto, o processo de subversão ao qual nos referimos, ao longo de nossa análise histórica, é o que traduzimos na evolução da ‘’identidade feminina’’, que partiu da ‘’mulher vitoriana’’, representada na música ‘’Ai! Que saudade da Amélia’’, à ‘’mulher revigorada’’, constituída na música ‘’Desconstruindo Amélia’’. Consequentemente, e como intersecção da discussão ao longo do artigo, visto como uma meta realizada desde o início, colocamos em perspectiva alguns problemas políticos, nesse itinerário, que incorporaram os movimentos sociais de mulheres, realizando uma análise do papel do Estado e das estruturas responsáveis em (re)produzir a ordem social e, desta forma, os papéis sociais. Em síntese, levando em consideração as discussões apresentadas, podemos concluir, entre muitas coisas, que o movimento das mulheres aconteceu pari passu à política institucional oficial, não havendo um diálogo ou inter-relação específica, embora observasse a criação de órgãos governamentais que visassem dar conta das questões das mulheres.

REFERÊNCIAS

ALVES, Ataulfo; LAGO, Mário. Ai, que saudades da Amélia. Rio de Janeiro: Odeon, 1942. Disco 48 RPM.

BEAUVOIR, S. O Segundo Sexo. Tradução de Sérgio Milliet. 4ª ed. São Paulo: Difusão

Européia do livro, 1970. Disponível em:

https://joaocamillopenna.files.wordpress.com/2018/03/beauvoir-o-segundo-sexo-volume11.pdf.

BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução de Renato Aguiar. 18a ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2019.

BOURDIEU, P. A Dominação Masculina. Tradução de Maria Helena Kühner. 11ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil. 2012, 160p.

SARTI, C. Feminismo no Brasil: uma trajetória particular. Cad. Pesq. São Paulo, 1988.

GOMES, J.J. (2008) Discurso Feminino: Uma análise crítica de identidades sociais de mulheres vítimas de violência de gênero. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós — Graduação em Letras, Universidade Federal de Pernambuco, Pernambuco, 2019. Disponível em: htpp:www.ufpe.b /pgletras/2008/dissertações/diss-jaciara-josefa-gomes.pdf.

PITTY; MENDONÇA, Martin. Desconstruindo Amélia. In: Chiaroscuro. Faixa 7. Prod. Rafael Ramos. São Paulo: Deckdisc, 2009. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=H26q55cJoo.

RAGO, M. Os feminismos no Brasil: dos ‘’anos de chumbo’’ à era global. Labrys, Estudos feministas, número 3, janeiro/julho, 2003. Disponível em: http://www.unb.br/ih/his/gefem/labrys3/web/bras/marga1.htm.

RAGO, M. Trabalho Feminino e sexualidade. In: PRIORI, M. Del (Org.). História das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 1997. p. 578 a 606.

[1] Cf P. Bourdieu (2012), A dominação Masculina, p.18

[2] Cf. P. Bourdieu, A Dominação Masculina, 2012, p. 9–10

[3] Podemos citar instituições como o Estado, a Família e a Igreja.

[4] Dicionário Online de Português.

[5] Definições de Oxford Language. 6 Dicionário Informal.

[6] PITTY, 2009. Disponível em: https://www.vagalume.com.br/pitty/desconstruindo-amelia.html

[7] Veja mais em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm

[8] Cf SARTI, C. Feminismo no Brasil: uma trajetória particular, p.40–41

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Brenda Dias

Graduanda em Ciências Sociais pela UNESP e Professora de Geografia Física e Política.